03 dezembro 2006

Pérola ou Vergonha 5 - O Eléctrico

Há muito tempo que não ando de eléctrico. Mas fui, durante muitos anos, cliente fiel e assíduo destas autênticas tertúlias móveis. Porque o eléctrico em si mais do que um meio de transporte era um espaço de convívio e de novos contactos. Cada carreira tinha a sua clientela, os seus adeptos, e mudar de um 28 para um 25 era algo de acintoso e uma grande falta de consideração.
Sempre tive o guarda freio como uma referência cuja admiração só era comparável a um Bento ou um Chalana. Era a profissão que todos queríamos depois de percebermos que não tinhamos grande jeito para a bola. Na ausência da Floribela todos queríamos imitar o guarda freio. Em vez de irmos ao espectáculo do Noddy íamos para o Alvito experimentar aquele eléctrico que lá estava. No Natal em vez do DVD dos D'zrt recebíamos um eléctrico amarelo de ferro, geralmente o 28 Graça-Prazeres, se bem que o meu favorito sempre foi o 29 Estrela-Gomes Freire. O 25 também era catita se bem que mais modesto. Era daqueles tipo pão de forma. Era o Estrela-Príncipe Real. Depois havia o 15, burguês, mais comprido que todos os outros e que vinha do Cais do Sodré para ir para a Cruz Quebrada. Era já um eléctrico suburbano e olhado com desconfiança sempre que se cruzava com os outros ali para os lado de Santos.
Para o guarda freio uma recta era um momento alto. Um momento de superação. Então no 29 a recta da Buenos Aires era a loucura. Depois de quase 20 minutos a subir a Rua de São Domingos em passada de tractor mal dava a curva junto à Rua de São Caetano e se desvendava a Rua de Buenos Aires, uma recta de quase 500 metros, o guarda freio olhava em redor para uma assistência em suspense e com aquele ar de "o único que tem mãos para isto sou eu" atacava ferozmente o manípulo e toca a mexer. Chegava a atingir os 40 Km/h. Este prazer incontido só era quebrado quando algum energúmeo lhe estragava os planos estacionando o carro e impedindo a sua passagem. Aí o guarda freio, através de um movimento brusco batia com o pé no chão pressionando violentamente a alavanca que accionava a campainha que servia de buzina. Estava estragado o dia.
Com a modernização do sector e a evolução da máquina perderam-se algumas das pérolas que faziam do eléctrico amarelo de bancos verdes cuidadosamente forrados e bem almofadados, revestimentos interiores a madeira, um verdadeiro luxo.
Uma delas era o facto de não ter portas fazendo da cabina do guarda freio um local de culto. Todos lá queriam ir. Todos iam em pé, inclusivamente o próprio guarda freio, e de vez em quando lá era necessário pegar na agulha, um engenho tipo pé de cabra, saltar para a linha e enfiar a gulha no carril para mudar de direcção. Esta tarefa era quase sempre monopolizada por cauteleiros, uma profissão de destaque na cabina e que eram os mais rápidos a deitar a mão à agulha. Todos se conheciam, todos se cumprimentavam, todos se despediam e prometiam voltar amanhã. Eram outros tempos mas eram grandes momentos.

2 comentários:

Anónimo disse...

Epa, acho q sei alguém c perfil de guarda freio ("e com aquele ar de "o único que tem mãos para isto sou eu" atacava ferozmente o manípulo e toca a mexer)!! Se só uma pessoa teria capacidade para alguma tarefa, então... quem poderia ser?

Anónimo disse...

O Teixeira??? Não posso.